SINHÁ, UM AMOR QUE ME FEZ VOAR E SONHAR ACORDADO.
- peixotonelson
- 18 de fev. de 2023
- 3 min de leitura

A rede de dormir estava parando, depois de embalos quase em órbita fora da casa. Era um vai e vem, de um palmo do chão ao alto, próximo ao telhado. O menino acordado, nesse movimento, recordava daquela que o fizera dormir, acalentando-o como filho amado.
A tia idosa era um anjo do céu, que com suas asas acariciava e levava o pensamento do menino, para além do planeta do dia-a-dia, fazendo-o sonhar com liberdade.
Ela me ensinava a conversar com as flores e as formigas, a fugir das cobras e a pular com os sapos. As lições me levaram a ver com o coração, o que havia debaixo da casca das aparências. Era tal como um arremedo de menino, no romance do "Pequeno Príncipe", de Antoine Saint-Exupery.
Aconteceu que a mãe daquela criança, aos três meses de vida, precisou viajar para tratar da saúde por causa de uma suspeita de câncer na tireoide. Passaram-se seis meses sem a mãe, mas sem faltar o amor, o carinho e a proteção, o sonho e a descoberta das mãos e do sorriso que lhe faziam gargalhar. Talvez, até suficente para duas crianças gêmeas numa só. Uma delas, ficando na casa da avó paterna e a outra na casa da tia Sinhá.
O coração do menino, a princípio, não se dividiu. Era amor de avó e amor de tia a abastecê-lo, até completar um ano de vida, quando a mãe voltara sã e salva do tratamento. E o menino continuava a crescer, frequentando aqueles dois ninhos, olhando o rio, vendo os hidroaviões cortar águas e sumir no céu. Havia a linguagem do vento nas folhagens das mangueiras e a cor do açaí da tia Sinhá.

As lembranças dos fatos da tenra idade são poucas, em comparação à memória afetiva e colorida que se formava para sempre nele. Havia diferenças em um lado e outro nessa corrida de afeição pelo menino que crescia. O colo de mãe quase desaparecia, ficando acirrada a disputa entre as tias solteiras que moravam com a avó, viúva, em uma casa gigante, cheia de regras, piedade e aparências. Do outro polo, a Sinhazinha, casada, com marido e suas duas filhas queridas, lindas e emancipadas , que eram o amor de simplicidade sem medidas, morando numa casa mais simples, sempre alegre, divertida e criativa. Havia um jogo bilateral de afeições diferentes, mas autênticas, um amor do jeito possível de ser.
As expressões da fé, em cada lado, eram diferentes. De um lado, havia a piedade, dentro da Igreja e em casa, o terço diário na sala, com menos sorrisos e sempre algumas repreensões para eu ficar quieto, em nome da boa educação religiosa. Do outro lado, mais perto do jeito da minha mãe, uma espontaneidade liberada, acolhedora e livre de peias moralizantes, como em dias de festa contínua. Sinhá liderava, pela afeição, o quarteto em sua casa, amava o menino como o filho que nunca tivera para criar. Pois, antes das duas meninas nascerem, o filho que tivera, morrera pequeno, envolto em um mistério nunca suficientemente revelado, tal era a dor reprimida.
Este fato de amor não realizado com seu filho, a tia Sinhá transferia para o pequeno que passava horas, com ela e as duas filhas jovens, bonitas, que me amavam de paixão. Confesso que a família da tia Sinhá, seu marido Gaxito e as filhas perderam a disputa para ficar com o menino, que gostava mais da liberdade da afeição do que da educação exigente das tias solteiras.
Lembranças da rede não faltam para essa criança, que sou eu, o Nelsinho. Ao lado da tia Sinhá, deitado na rede, aprendi a sonhar, a imaginar como ser livre e fiel ao amor de família. Ouvir histórias e dormir ao som de canções como "ĺndia, teus Cabelos" e "Recuerdos de Ypacaraí”. Sentia-me envolto no amor gratuito, leve e confiante que retornou em mim nas fases mais maduras e românticas da vida.
Entretanto, ficara também, marcado com a educação inegociável das tias solteiras, de personalidades diferentes, liderada por aquela que, por trabalhar fora de casa, garantia o sustento mais significativo. Esta se tornava a mais autoritária no comando da casa, dando a nota de constante fiscalização para que todos concordassem com seu jeito de ser "dona" da casa. As outras duas tias solteiras eram ternas, sendo uma a líder para a cozinha, costura e bordado, e a outra , como professora, florista e doceira.
Nesse ambiente, vivi uma ambivalência de afeto e autoritarismo, amansado e marcado, mais por aquela terna tia Sinhá e seu marido que brincavam comigo. Lamento ter sido gestado em mim um leve conflito com a autoridade. Até que um dia, já com meus nove anos, decidi ir viver com minha mãe e irmãos, abrindo-se para mim um novo caminho aos 11 anos.
(NP).











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