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O AMIGO BORRACHEIRO DE HOJE, BUCHEIRO HONRADO DE ONTEM.



Quem diria a surpresa que tive quando, diante de um lote de pneus usados, apareceu um homem idoso que se expunha à luz do sol, naquela manhã, para consertar um pneu furado, que lembrava com saudade de suas viagens ao nascer do sol quando atravessava o Rio Negro para seu ofício de oleiro (Foto de Gisele Braga Alfaia).


Sempre curioso e puxando conversa, eu me exatasiava com sua fala, enquanto ele identificava o furo do pneu dentro de uma gigante geladeira velha, cheia de água. Contou-me que nascera na boca do Rio Badajós, Am. Para mim, um nome mágico que atiçou minha curiosidade e me trouxe lembranças das viagens missionárias. Sim, naquela imensidão perdida, na metade dos anos 50, que eu só conheci nos anos 80. Nossa conversa foi desde o barracão que seu pai construiu, com as madeiras nobres, pesadas e infindáveis da floresta, até sua vinda com o pai e seus irmãos pequenos para Manaus, passando a morar à beira d'água no bairro de S. Raimundo, sempre a contemplar o outra margem do rio. Daí, veio a sequência de trabalhos que empreendeu, contada com orgulho de vitória e de saúde preservada, sem saber como. Somente Deus dando sua força criadora e sustentadora da vida.

Desde os 14 anos, trabalhando com o pai num batelão, canoa funda e forte, com um motor para movê-lo lentamente. Começava às 4 horas da manhã, tendo que atravessar o Rio Negro, na frente da cidade, onde pegava argila para a fabricação de tijolos e telhas da cidade de Manaus, que crescia. Antes de carregar as bolotas de argila para dentro do batelão, tinha que prepará-las, escavando o barro, pisando e socando, regando com seu suor e as águas paradas.


Carregava nos ombros aquele produto que abrigaria e protegeria famílias das intempéries do calor e das chuvas amazônicas, quando se transformassem em casas. Trabalho pesado, precário e bem valorizado, certamente, mais para o português, dono da olaria, que ficava no Bariri. Parte baixa do Bairro da Matinha (Santa Luzia). Santa que me lembrava da cura do cego de nascença, quando Jesus fez lama com a saliva, passou na vista do cego e o curou. (Jo.9 6). Não havia pecado para justificar a cegueira. Havia era uma situação exigente para que pai e filho acabassem de criar os outros, que eram os irmãos do Mário Jorge. (Foto: Gisele Braga.Alfaia)

Este sábio amigo foi me contando mais de sua vida de trabalhador, fiel e ambulante pela cidade, quando mudou de atividade. Não precisou mais atravessar o Rio Negro, de madrugada, mas seu dia começava cedo como nos velhos tempos de garoto, que vendia banana frita, banana em calda, cascalho, picolé e salgados, antes de ir trabalhar com as bolotas de barro.


Desta vez, em sua nova etapa de trabalhador incansável, foi ser vendedor de miúdos de boi, que pegava, de madrugada, no antigo matadouro do Bairro da Glória, bucheiro ou miudeito. Situava-se no mesmo traçado dos braços dos igarapés de onde atravessava para pegar a matéria-prima da olaria. Então seu trabalho deu-lhe a honra de ser o maior bucheiro da cidade. Circulava pelas ruas dos bairros vizinhos, com o tabuleiro na cabeça, duas vezes por dia, com roteiros diferentes a cada vez. Simpático, conversador e bem arrumado, tinha sua freguesia certa e fiel.

Com o fechamento do abatedouro da Bairro daGlória e com as normas da vigilância sanitária, passou para uma nova fase de trabalho. O objetivo de comprar um terreno, erguer sua casa e ir vivendo com honradez. Contou-me do tempo de buscador de ferro velho, antes de ser chamado de sucata ou material reciclável. Ao lado dos pneus usados, mostrou-me seu troféu de vitória. O carrinho de madeira que construiu para carregar os ferros velhos encontrados e pedidos por ele pelas casas e terrenos. Chegou a acumular 200 toneladas de ferro, no tempo que lhe rendia R$ 0,13 o quilo.

Nesse tempo, não havia a atividade empreendida pelos sem-teto, moradores de rua e dependentes vulneráveis que fazem pente fino nas frentes das casas e construções para catar resíduos sólidos, a fim de vender e manterem-se vivos. O Mário Jorge dessa história, em homenagem a S. Jorge, era o "dragão do ferro" em seu cavalo de madeira e rodas a puxar pelas ruas.

Seu projeto foi se concretizando, até poder comprar um terreno num buraco que aterrou para erguer sua casa, situada à beira da Av. Brasil, Manaus, inicialmente mais depósito do que moradia. Com a chegada de empresas de sucata e dos catadores de resíduos sólidos, pegou suas últimas economias e foi montando sua borracharia lentamente, sem esquecer da sua obra-prima de transportar ferro pelas ruas, que ficava exposto ali.


Era seu troféu de vitória, que conserva até hoje, como sinal de que a luta para sobreviver continua, gastando seus dias e animando os motoristas que procuravam seu serviço e sua simpatia.

A prova de sua valentia estava estampada em seu rosto e na alegria com que me contava suas histórias. Tem mais. Afinal, o Mário Jorge é o "dragão do ferro e do barro", que navegou sobre as águas e tem mil aventuras para contar.


Quado voltei para conferir as inforrmações, como devolutiva e para fazer algumas correções, ele me veio com a declaração acerca de sua pesquisa sobre as "18 cobras grandes" que vivem nas profundezas do rio Negro, dentro do percurso que vai do encontro das das águas (Rio Negro e Solimões) até o arquipélago de Anavilhanas. Um dia contarei. (NP)


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