GRAVIDEZ APRISIONADA POR RIGOR PATERNO NOS RIOS E BARRANCOS.
Um extenso paraná corta a floresta aquosa que sai do Rio Copeá e vai até aos lagos gigantes ao norte do município de Codajás, Am. Nas épocas de vazante, a corredeira falha, cria poços e exige pés na lama e canoa no ombro.
Como navegante dos rios, não me embrenhava neste paraná fora das águas em alta. Algumas enchentes favoreciam nosso barco passar quase tocando nos galhos das árvores ou nos recantos próximos das orquídeas perfumadas. Certa vez, senti o cheiro de uma Cattleya violacea. Parei e colhi prometendo entregar para quem encontrasse e precisasse de um gesto de carinho, mas minha generosidade falhou
Naqueles dias, seguia em viagem missionária, num trajeto curioso, com o objetivo de visitar pontos isolados de população ribeirinha, de difícil acesso para um acompanhamento pré-natal, ou para medicação de pressão alta ou medição de dosagem de açúcar no sangue. Nesse contexto, passo a contar e posso até dizer do martírio de duas crianças.
Navegamos horas e mais horas com uma corredeira mansa das águas que deixava as árvores das margens com pouco mais de um metro de várzea ou de barrancos mais altos, onde apareciam casas cobertas de alumínio que nos cegavam ao olhar.
Uma curiosidade: sobre os telhados de alumínio, havia rodelas de bananas verdes secando ao sol. Isso mesmo! Nessas distâncias, uma alternativa nutricional para substituir o leite era a biomassa de banana, o que atualmente se proclama como novidade de nutrição inteligente. As mães secavam as bananas e as trituravam em pilões ou máquinas de moer.
Seguindo viagem, notamos que, nas poucas casas que beiravam o paraná, crianças felizes brincavam e saudavam, dando adeus para nós. Éramos dois: um padre aventureiro que viera de São Paulo visitar Coari, provavelmente para adquirir experiências resignificativas de sua história vocacional de trabalhos em igrejas de pedras; e o outro era eu, navegando pela primeira vez naquele paraná que se chamava Codajás-Mirim.
Adiante, resolvemos parar o barco no porto de um conjunto de três casas para encontrar os moradores, mostrar interesse e anunciar a Boa Nova de Jesus que não esquecia de ninguém, mesmo morando naquela lonjura da cidade, e que quer a todos felizes com seus direitos de vida plena. Seria possível evangelizar a partir do interesse das pessoas, naquelas condições precárias?
Nosso esforço era conhecer e perceber onde se situavam os indicadores de qualidade da vida do povo. Crianças sujas de lama, mas sorridentes, homens de mão calejada e manchada do corte das bananeiras, mas robustos, mulheres submissas ou caladas, mas bem penteadas e de roupas coloridas. Com essas observações que fazíamos, nos perguntávamos: seria possível, naquele lugar, conhecer a vida do povo, seus desafios de sobrevivência, seu modo de relacionar-se, seus costumes e o futuro de sua vida e de sua fé?
Estavam numa casa de madeira, com sala ampla e dois quartos laterais. Durante a celebração da fé, ouvíamos conversas em voz de sussuro, umas batidas leves de bacias de alumínio e um entra e sai de mulheres pelas portas do fundo da casa. Eram os homens e as crianças que estavam mais permanentes durante a reza.
No fim das orações e conversas com a pequena comunidade reunida, inclusive com o dono da casa, veio a notícia do nascimento de dois meninos gêmeos. Aconteceu o parto no quarto ao lado. Inacreditável nos terem confessado que ninguém da família sabia da gravidez de uma das filhas da casa. A jovem conseguira disfarçar usando faixas para apertar a barriga ao longo dos últimos meses.
Muito triste o que soubemos. As crianças nasceram mortas, não brincariam no rio, não comeriam biomassa de banana e nem correriam pelo terreno. As mulheres, certamente, sabiam da gravidez, mas faltava coragem para romper com a dominação do pai, ou do moralismo do nascimento do filho sem o pai dar-se como conhecido. Não nos cabia julgar a jovem mãe que perdeu os filhos, nem condenar o avô que ficou sabendo que perdera os seus primeiros netos. Triste fiquei por não ter entregue a orquídea para mãe das crianças que nasceram sem vida.
Este fato foi para nós o tema gerador de muitas conversa, no presente e para o futuro. Ficou evidente que precisávamos apoiar o protagonismo das mulheres, sobretudo da jovem que perdera os filhos com o medo de anunciar sua gravidez. Restou a questão: por que a jovem escondeu a gravidez? Poderíamos supor que, naquelas beiradas distantes, imperava a prepotência dos homens sobre os direito das mulheres?
* As fotos são de Gisele B. Alfaia. Instagram: @giselealfaia
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