RECORDAÇÕES DO VERDE FLORIDO DOS ALAGADOS NO RIO QUE SECOU
(Revisado) Tristes expectativas acerca da seca dos rios do Amazonas. É uma situação dramática, agravando-se a cada ano para os que se consideravam ribeirinhos e viventes nos alagados das várzeas altas, com impactos que chegam nas cidades.
Recordo apenas de secas médias, não tão graves, que exigiam caminhadas na areia quente das margens espraiadas, com sua decoração de borboletas amarelas, azuis e brancas povoando e pousando nas flores quase secas dos murirus e aguapés que resistiam nas poças quase vazias.
Certa vez, navegando ao amanhecer, na hora que as orquídeas perfumam o igapó, olhando os troncos das árvores para presentear-me com uma catleya violácea, eis que fixo o olhar surpreso sobre uma, ao alto da minha possibilidade de capturá-la com as mãos, precisando afastar-me para coletar uma vara. Neste momento, vejo uma jequitirana boia (cobra voadora?), vindo em minha direção, assustando-me. Com a vara nas mãos, consegui afastá-la e vê-la como guardiã daquela orquídea. Até hoje, guardo o perfume na minha memória afetiva!
Na versão de uma superenchente, cada vez mais rara, surgem ilhas imensas de canarana que impedem ou exigem esforço dobrado dos braços, enquanto que, no fim da vazante, são as pernas e as cabeças que se movimentam para superar as distâncias, seja ao carregar o peso das mercadorias, seja com os filhos pequenos.
Os idosos ficam isolados, assustados, desinformados e perplexos pelo que está acontecendo e confusos com a apocalíptica impressão de "fim dos tempos". Por que dessas mudanças climáticas? Quanto aos doentes, estes são carregados, em rede, por horas a fio, quando não morrem à míngua com os "anadores" fora de validade.
O Amazonas, em sua planície ou "planeta água", quando na enchente, é um emaranhado de vias aquáticas quilométricas que encurtam distâncias, com sua população dispersa pelos braços de água, igarapés e igapós. Daí, o custo humano de dor e isolamento nas grandes vazantes, faltando água para beber e se tornando uma tortura encontrá-la. Nessas condições com água parada e contaminada se torna a fonte de doenças tão conhecidas e anteriormente mais controladas, tais como amebíase, giardíase, gastroenterite, febre tifoide e paratifoide, hepatite e verminoses. Configura-se uma situação de calamidade pública, que muito mais vulnerabiliza os empobrecidos, que sofrem num negacionismo das causas dessas vazantes com os leitos dos rios em processo de desertificação.
Para ilustrar a explicação sobre natureza cíclica das águas, que vem de milênios, desde a formação dos rios, tenho uma história que mesmo poetizando-a, não deixa de ser assombrosa.
Certa vez, navegando na cheia, entro em um paraná, que é um braço acolhedor de águas correntes e refrescantes, encontro um idoso, que antes deitava e se deleitava na sua rede, debaixo de uma mangueira. O filho dele me contou que caíra da rede e machucara a coluna na raiz da própria árvore que lhe dava sombra. Como acontecera durante a última vazante foi impossível levá-lo para o posto de saúde na cidade.
Em outra ocasião, encontrei uma senhora de meia idade sentada numa cadeira, sem poder deitar em redes, devido às consequências de uma queda de escada. Se fosse no tempo de vazante, seguramente, estaria entrevada ou morta por falta de assistência médica.
Perguntei se a tinham medicada com remédios da floresta. Disseram-me que não, porque a santa curadeira da vizinhança cansara-se de andar pela floresta, atrás de remédios para fazer seus unguentos.e não encontrava. Impôs-se assim os remédios das "bigpharmas" multinacionais no lugar dos medicamentos naturais.
Apesar de tanta dores documentadas, nas épocas de vazante profunda, vê-se um clamor político para dar socorro às vítimas da seca, tanto para proteger a economia do Estado, quanto para salvar as comunidades mais atingidas. Dizem que a distribuição de cestas básicas e de água potável, assim como a dragagem dos rios, ajudam para abastecer os cofres para a campanha eleitoral daqueles que podem parecer que, quanto mais o povo sofrer, mais fácil será permanecer no poder.
Recordações, lamentações, protestos e saudades dos ventos nas beiradas dos rios, das folhagens dançantes que não dão mais o ritmo suave da vida interiorana, entre enchentes e vazantes.
Nem mais os idosos nas redes debaixo das árvores, e nem as orquídeas perfumando as folhagens do igapó, chamando as abelhas para a polinização de onde se encontrava o melhor mel da floresta molhada! Em seu lugar, a fumaceira ganha espaço e faz os olhos chorarem!
As totos são créditos de Gisele B. Alfais.
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