AMOR E POESIA DE INDIGNAÇÃO PELAS ÁRVORES TOMBADAS E A FUMACEIRA
A ONÇA PINTADA E O ÚLTIMO ABRAÇO NO CACHORRO FIEL
É difícil escrever a presente história depois de assistir ao último suspiro da onça, que acabou de morrer nas pernas de um cão caçador. A floresta, naquele pedaço de terra alta, parecia estar fervendo de tanto calor. Muitas eram as derrubadas de árvores centenárias cujas labaredas nas folhas verdes esfumaçavam e sufocavam a vida que restava. Os animais já tinham corrido para longe ou tinham sido mortos no fogo. No começo da devastação, eles vinham aninhar-se perto do barracão que, no 2º ciclo da borracha, abrigava os seringueiros que tinham acabado de chegar do Nordeste.
Ali morava um velho seringueiro sem família. Todas as noites, chorava com saudade do filho que morrera numa derrubada de árvore. Ele contou-me sua triste história. Seu filho fora trucidado pelo galho de uma castanheira que quebrou, em decorrência da derrubada de um gigante pé-de-maçaranduba.
Seu filho fora cooptado pela gana da exploração de madeira nobre e se juntara com os madeireiros, carregando motosserras como mochilas. Com o sonho de ganhar dinheiro, esqueceu o pai que ficava esperando-o no fim do dia. Mas o dia não chegou para o pai abraçar seu filho vivo pela última vez, como fazia sempre quando voltava das derrubadas.
A saudade era grande naquela tarde enfumaçada. Restava apenas o cachorro que se escondia entre as folhagens secas, porque as toras preciosas de madeira já tinham ido compor a jangada que seguiria para a serraria mais próxima. O pai quase fazia do cachorro o substituto do filho, que transformara em sua única fonte de alegria possível, naquele abandono da floresta sem vida, pois eram tantas as lembranças dos dias felizes de pesca e caça junto do filho.
Para piorar a situação, o cachorro estava ficando magro e doente, assim como o velho seringueiro, ao ver sua ponta de terra devastada, sem caça e com escassez de peixe, mas que ainda dava para matar a fome, inclusive a do cachorro.
Nas noites sem lua, o velho era espantado pelos esturros de um animal, que dúvida não tinha, pois sabia que era uma onça. Mas como era possível, naquela terra queimada, que afugentou os bichos todos? Os pássaros nem mais cantavam no amanhecer, e de noite apenas uma coruja assombrava.
Em certo amanhecer sem sol, nublado e solitário, o velho seringueiro só tinha peixe salgado, mas sem nada para dar ao seu cachorro faminto, que arquejava. Não esquecia o esturro da onça que certamente estava por perto, mas o cachorro parecia que perdera o olfato. Aconteceu que, atrás de um toco estorricado, flores pareciam ter crescido na frente de um fantasma imóvel, como se estivesse de braços abertos, protegendo as flores.
Na miragem encantada das flores, o velho viu aparecendo a onça pintada, que vinha se arrastando e aproximando-se do cachorro magro. Deitou-se ao lado e colocou as patas sobre a cabeça do cachorro, que dormia desfalecido de fome. Ambos estavam tão doentes que parecia que já iam morrer abraçados. Pensou e falou o velhinho: "vou ficar só na solidão da ilha, meu único consolo, nesta devastação, da mata restante será a floração que resiste e brota no toco queimado.
Completo essa história, com o poema de meu professor Paulo Suess, quando me deu de presente seus Poemas de Resistência: Do GRITO à CANÇÃO.
“Flor seca do sertão / parece sem vida / entregue ao chão, vítima assinalada pela morte. Porém, na ponta / do toco estorricado / desabrocha um sorriso / encarnado / desarmado / proclamando a resistência / da vida que é mais forte”
E neste poema, desde meus 30 anos, tenho comigo o quadro do artista plástico Cláudio Andrade que me fala do amor que devo ter às florestas e à sua biodiversidade, embora com saudade do velho seringueiro, do seu cachorro magro e da onça pintada que morreu abraçado, mas crendo como eu e meus amigos no futuro da Amazônia.
Foto 1 de abertura do texto é creditada a Gisele B. Alfaia
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